Doenças como hanseníase, malária e poliomielite são chamadas de negligenciadas por não atraírem o interesse dos setores voltados à inovação das empresas farmacêuticas e até mesmo da própria comunidade científica mundial.
Mas, nos últimos anos, com os avanços promovidos pela biologia molecular, o interesse no estudo dessas e de outras doenças negligenciadas foi renovado e deve estimular a retomada de financiamento para as pesquisas.
A avaliação é de Laura Rodrigues, professora de epidemiologia de doenças infecciosas e chefe da Faculdade de Epidemiologia e Saúde da População da London School of Hygiene and Tropical Medicine.
Radicada desde 1981 na Inglaterra, a brasileira formada em medicina pela Universidade de São Paulo (USP) foi a primeira mulher estrangeira a chefiar uma das faculdades da instituição, onde também dirige o Comitê de Igualdade de Oportunidades.
Laura concedeu entrevista à durante o UK-Brazil Tropical Medicine Workshop, promovido pela FAPESP e pelo Consulado Britânico em São Paulo dias 21 e 22 de fevereiro, em São Paulo, por iniciativa da Academia de Ciências Médicas (AMS, da sigla em inglês) do Reino Unido.
O evento, que integrou a Parceria Brasil–Reino Unido em Ciência e Inovação, reuniu cientistas do Brasil e do Reino Unido com o objetivo de aumentar a colaboração entre os dois países em pesquisas sobre doenças tropicais.
– Poderia falar sobre as pesquisas que a senhora coordena atualmente na London School?
– No momento, como chefio uma das faculdades, minha pesquisa está mais limitada por conta das responsabilidades administrativas. A minha área principal de pesquisa atualmente é a avaliação de vacinas para doenças infecciosas. Estou atuando em um projeto de estudo da eficácia da vacina contra a tuberculose, a BCG, dada na infância e na idade escolar, na Inglaterra. A BCG é uma vacina que funciona bem quando dada no nascimento, mas a eficácia varia se aplicada mais tarde. Em colaboração com o professor Maurício Lima Barreto, da Universidade Federal da Bahia, em Salvador, fizemos um grande estudo, com financiamento inglês e brasileiro, sobre a eficácia da segunda dose da BCG. A pesquisa demonstrou que a segunda dose da vacina não dava proteção de mais de 30%, que é o mínimo necessário para a saúde pública. Estamos continuando o segmento etário da população pesquisada e, agora, a proteção proporcionada pela vacina está começando a aparecer. A resposta inicial pode ter sido um pouco simplificada e, talvez, com um segmento mais longo de idade, consigamos destrinchar um pouco melhor o que está por trás da proteção proporcionada pela vacina.
– Há outras vacinas candidatas a substituir a BCG?
– Houve um investimento enorme para desenvolver novas vacinas para tuberculose nos últimos anos, mas, no momento, não há boas vacinas candidatas e é possível que novas vacinas de tuberculose tenham que ser dadas juntamente com a BCG. Acho que uma vacina melhor que a BCG talvez não seja encontrada. Em função disso, precisaremos desenvolver uma vacina que melhore a BCG ou proteja nas áreas e nos momentos em que ela não protege.
– Além dessa pesquisa sobre a BCG, a senhora realiza outros projetos em colaboração com pesquisadores de instituições de pesquisa brasileiras?
– Também desenvolvemos em Salvador um projeto de estudo sobre os aspectos da asma, que está aumentando no mundo inteiro a ponto de se falar em epidemia. Há uma variação geográfica muito grande na prevalência de asma e Salvador é uma das cidades com prevalência mais alta dessa doença inflamatória em todo o mundo.
– Por quê?
– É o que estamos tentando descobrir. Há a questão de por que a asma está aumentando e também por que está aumentando em diferentes lugares com velocidades distintas. Uma das hipóteses é que, com o controle das doenças infecciosas, o sistema imunológico estaria mudando da direção para o qual estava orientado. Antes, ele estava voltado para a luta contra vírus e bactérias e, agora, poderia estar mudando para combater inimigos grandes, que são os alérgenos, que causam alergia e asma. Mas essa hipótese foi um pouco revista porque os helmintos (vermes parasitários) também são grandes e nos lugares onde há muita infecção e muitos helmintos a prevalência de asma é baixa. Uma das hipóteses é que os helmintos modulariam para baixo o sistema imunológico, o qual, estando desregulado, causa mais asma. Essa foi uma das questões pela qual começamos a estudar nesse projeto a cidade de Salvador. O professor Barreto havia realizado pesquisas com um grupo de crianças nas quais ele mediu a presença de helmintos na infância. E nós utilizamos esses dados para verificar se a presença de helmintos na infância diminuía a chance de ter asma mais tarde.
– Quais foram as conclusões?
– O que os resultados preliminares estão mostrando é que infecções intensas por helmintos reduzem a alergia, que foi medida por exame de alergia na pele, mas reduz muito menos a frequência de doença alérgica. Existe um papel de imunomodulação, mas não é muito grande. Outro ponto que ficou aparente nesse estudo é que uma proporção grande da asma em Salvador não é causada por alergia, ou seja, é uma asma não alérgica. Esse é um novo campo de pesquisa interessante e existem sugestões na literatura científica de que a asma não alérgica estava aparecendo, mas não tinha sido identificada como um campo de pesquisa importante. Aparentemente, a asma alérgica é mais frequente em pessoas de melhores condições sociais por causa da menor imunomodulação, e a asma não alérgica é maior em pessoas de situações menos privilegiadas. Talvez, no Brasil, a asma não atópica esteja relacionada a desigualdades sociais. Essa é uma área de pesquisa interessante que estamos desenvolvendo agora.
– A que se deve esse aumento do interesse da comunidade científica internacional no estudo da asma e da tuberculose?
– Porque essas são doenças ressurgentes. A tuberculose aumentou muito na década de 1990 com a epidemia da Aids e passou a ser uma doença de saúde pública, mesmo em países ricos. Com isso, também reapareceu o financiamento e aumentou o interesse dos países ricos, que, de certa forma, controlam a agenda de pesquisa internacional, em pesquisá-la. Quando os Estados Unidos falam que a tuberculose é de interesse para pesquisa, muitos outros começam a estudá-la. E também porque atualizou a pesquisa da tuberculose. A doença ressurgiu em uma época em que a tecnologia está mais avançada. E ela é uma doença interessante de ser pesquisada, por ser muito complexa e sobre a qual é interessante olhar os diferentes aspectos.
– Por outro lado, há doenças, como a malária e leishmaniose, que compõem o grupo das doenças conhecidas como negligenciadas, pelas quais há um interesse de pesquisa muito menor por parte da comunidade científica. A que a senhora atribui esse menor interesse?
– Acho que no momento em que a comunidade científica internacional forma uma opinião de que uma doença começou a desaparecer ou que parece que será controlada, o interesse e o financiamento se esvaem e o volume de pesquisa decresce. Isso ocorreu com a malária. Acharam que ela ia ser eliminada e ninguém mais passou a estudá-la. Não havia mais malariologistas. Aí, de repente, perceberam que era um problema ainda sem controle e voltou o interesse a ponto de hoje haver muito mais financiamento para pesquisá-la. Isso está ocorrendo também com a hanseníase. Com a poliomielite, que está desaparecendo com a vacinação, também estava acontecendo a mesma coisa. Existia uma área enorme de prevenção de pólio que acabou porque se acreditou que a doença foi debelada. Esse instinto de dizer que uma doença não representa mais um problema, que não é preciso mais se preocupar com ela, é saudável e racional. Mas, às vezes, pode ser uma percepção errada. Por outro lado, por causa da revolução promovida pela biologia molecular, o interesse na pesquisa de doenças negligenciadas hoje está explodindo. Com base nisso, eu acho que esse campo vai se abrir de novo. Desde que haja financiamento para esse tipo de pesquisa, é um campo que voltará a ficar atraente logo.
– O que levou a senhora a construir sua carreira científica na Inglaterra?
– Eu fui para Londres para fazer mestrado, em 1981, aos 28 anos. Em 1987, quando concluí o doutorado, fui admitida como professora da disciplina de epidemiologia de doenças infecciosas na London School. Acho que a instituição foi mais favorável para a minha carreira científica do que seriam outras. Por ser tão internacional, ela procura incentivar a diversidade e promover a igualdade de gêneros, e isso foi muito útil para mim.
– Em 1996, a senhora se tornou chefe da Faculdade de Epidemiologia e Saúde Pública, que é uma das três faculdades da London School. Quais foram suas contribuições para possibilitar o acesso de outras mulheres no quadro de professores da instituição?
– Dediquei parte do meu tempo para discutir com a direção da escola a necessidade de promover ações para incentivar a diversidade e promover a igualdade de gêneros e, com isso, foram implementadas algumas iniciativas. Acho que como mulher e estrangeira cumpri o meu papel de valorizar a diversidade e estimular a igualdade de gêneros na London School. Participei da primeira pesquisa com os alunos para saber se eles achavam que havia sexismo na instituição e sempre estive engajada em ações para permitir mais igualdade.
– A senhora também chefia o Comitê de Igualdade de Oportunidades da London School. Qual o papel desse comitê?
– Ele olha todos os anos os aspectos possíveis de discriminação na instituição, como os processos de recrutamento e promoção de professores e diretores. Identificamos uma possível discriminação na realização de concursos para contratação de professores titulares. Percebemos que são contratados mais homens do que mulheres nesses concursos, e estamos discutindo se isso reflete uma desigualdade externa à instituição ou se, de alguma forma, está ocorrendo discriminação no nosso processo de seleção. Mas, hoje, há muitas mulheres exercendo cargo de chefia na London School.
– A senhora pretende regressar ao Brasil para realizar pesquisa?
– Isso sempre representou uma possibilidade para mim, e contribuir com a pesquisa brasileira sempre foi essencial na minha carreira na Inglaterra. Às vezes me pergunto se, estando na Inglaterra, com a ênfase que eu dou ao Brasil, eu não contribuí mais do que se eu estivesse aqui, porque lá eu abro portas. Lógico que a pesquisa no Brasil no momento é extremamente atraente. A pesquisa está mais bem financiada e é de alta qualidade. Mas, de certa forma, o futuro que vejo não é necessariamente a repatriação, mas o aumento da mobilidade científica, que é algo importante porque as pessoas trazem perspectivas diferentes. A comunidade científica é um mundo cada vez mais cosmopolita. Na London School of Hygiene and Tropical Medicine, por exemplo, há professores de 40 países. Ninguém faz pesquisa isoladamente. A ciência funciona com a revisão dos pares. Tem que ter esse caráter internacional e a análise pelos pares. O Brasil precisa estar no meio da ciência internacional, colaborando para ser avaliado, para avaliar e para trocar conhecimento, como países como a Inglaterra e os Estados Unidos também precisam. Todo mundo tem que estar nesse universo cosmopolita da ciência.